Leia as Histórias
Fenômenos estranhos são o que não faltam na história de São Miguel. Mas um, em especial, chama minha atenção. Por insondáveis razões, o sujeito que aqui mora quando atinge uma renda de cinco salários mínimos mensais a primeira coisa em que pensa é mudar para o Tatuapé. E acaba indo. Em geral, manipulado pela mulher, o infeliz acaba trocando nossa bucólica e aprazível estância hidropluvial por um lugar estranho, onde só existem carros, prédios, corintianos e emergentes. Substituem o prazer de flanar, em um sábado à tarde, pelo calçadão da Serra Dourada, pelo martírio de circular nos corredores de um shopping de quinquilharias dentro de uma estação de metrô.
Só mesmo um desatinado trocaria o fantástico filé à parmegiana do Piassi por aqueles esquálidos bifes de chorizo do Bracia Parrilla. Tivesse um pouco mais de paciência, trabalhasse um pouco mais e, principalmente tivesse estudado um pouco mais, mudaria direto para Higienópolis, um bairro muito mais parecido com São Miguel, cheio de características coincidentes, praticamente um bairro irmão. Um irmão gêmeo, tantas são as semelhanças e afinidades econômicas, sociais e culturais. Para encurtar a conversa, vamos tratar só de quatro pontos comuns entre nós: colônia, cachorros, metrô e vereadores.
Lá como cá, há uma colônia predominante, que invade as ruas com sua indumentária, sua língua, sua comida e seus costumes. Por lá, aos sábados, o preto predomina para os homens, as roupas claras e discretas para as mulheres, terninhos e vestidos bem comportados para as crianças. Por aqui, homens de bermudão cinza, camiseta regata, mulheres de top, shorts, muita barriga de fora, algumas literalmente caindo para fora e sandálias havaianas, naturalmente, legítimas. Cachorros, então, nem se fala. São os bairros com as maiores populações de caninos da cidade. Os de lá, coitados, andam sempre presos, vestidos ridiculamente, tendo que puxar uma senhora gordinha na faixa dos seus cinquenta anos, limitado entre seus apartamentos, à Praça Buenos Aires e o shopping. Desconfio que se proibissem a entrada de cachorros em shopping o de lá ia ficar mais deserto que cérebro de deputado. Já os nossos são livres, atléticos, magérrimos, passeiam todo o tempo sem precisar arrastar ninguém, comem e dormem onde e quando querem.
Também temos em comum o desapego ao metrô. Não queremos estações e trens que tragam uma gente diferenciada para junto de nós. Higienópolis não quer porque não precisa e nós não queremos por marra mesmo. Já vivemos tanto tempo sem ele e nunca fizeram um projeto em que estivéssemos contemplados com um ramalzinho sequer. E além do mais, gostamos mesmo é de um trem lotado, de um ônibus com gente pendurada, de gastar horas para atravessar a Marechal Tito. Isso favorece a socialização. Ficamos mais tempo juntos, às vezes até três horas para chegar ao Parque Dom Pedro. O ônibus cheio é a nossa praia, lugar de paquera, de fofocas, de saber da vida dos outros. É uma festa.
Quanto aos vereadores, os dois bairros não os têm. De novo, Higienópolis simplifica a questão: quando precisa aluga um. Sai mais barato e ainda não corre o risco de um dia ouvir o Datena exclamar, ao vê-lo saindo algemado da Câmara: "olha lá o vereador de Higienópolis". Nós, os são-miguelenses, não gostamos de eleger vereador. Achamos uma judiação pegar aquela montoeira de votos e votar apenas em dois ou três candidatos, mesmo que sejam residentes aqui. Costumamos dividir nossos votos entre os mil e duzentos postulantes. Combina mais com nosso espírito generoso e solidário. Ninguém, seja de onde for, fica sem voto em nossas seções; basta aparecer uma única vez em época de eleições, alugar um "puxa-saco" e este lhe garante os votos em troca de uma carteirinha de assessor ou, em casos especiais, uma vaguinha no gabinete ou na subprefeitura. Agora, se tivesse que escolher entre morar lá ou cá, ficaria mesmo com a Santa Cecília, que é exatamente a mistura dos dois.
E-mail: humberto.mariano@hotmail.com
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Modesto Enviado por Modesto Laruccia - modesto.laruccia@hotmail.com