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Primeiro compromisso sério com o futuro, a felicidade em saber que em breve estaria com uma profissão, a sensação de que algo promissor me esperava alguns anos adiante, sensação boa, mente de jovem despreocupado, fase da vida de um paulistano que ainda consegue deitar e dormir. Compromisso que me fazia acordar bem cedo, não podia perder o Largo da Concórdia que saía pontualmente às cinco e vinte da manhã, nossa! É impossível não se lembrar de detalhes das manhãs de inverno; saía de casa com duas calças, duas meias, vários agasalhos - bem coisa de paulistano da periferia, pois as roupas que tinha não esquentavam muito.
O trajeto era de uma hora e meia até o Braz. Gostava de sentar no último banco e, como descia no final, todo dia via as mesmas pessoas entrarem e saírem durante um trajeto que cruzava os bairros da Vila Nhocuné, Vila Matilde, Penha, Vila Carrão, Tatuapé e Belém. O mesmo motorista, o mesmo cobrador, mas, mesmo assim, eram raros os cumprimentos de "bom dia!"; coisa de paulistano, aprendendo a ser desconfiado na metrópole.
Lembro-me de uma garota muito bonita que por meses sentava-se ao meu lado, e dia após dia ensaiava o que dizer a ela... Certo dia, ela não apareceu mais, que frustração.
Como era bom ficar olhando pela janela! Ver o movimento das pessoas pelas manhãs, crianças indo à escola, trabalhadores ao batente, senhores de idade com suas carteirinhas ao médico.
O cheiro das manhãs era bem peculiar... Dentro do ônibus posso dizer que não era tão agradável assim, mas lembro-me quando parava em frente à uma padaria na Celso Garcia... Podia ver as pessoas tomando seus pingados e o aroma daquele lugar adentrava no ônibus. Ah! Que cheiro de café, que cheiro de "manhã"!
Ao chegar ao Largo da Concórdia, ia a pé atravessando o viaduto Rangel Pestana, marmita na bolsa, garantia de bom almoço, aliás, que saudade que tenho de comer uma marmita, comidinha da mamãe que na época eu tinha a audácia de reclamar! Talvez certa vergonha, dessas de adolescente. Chegava e ia direto para o pátio, esperava dar o horário de entrada para as aulas teóricas, no intervalo, entre zoeiras e sarros dos colegas, íamos colocar nossas marmitas nos aquecedores. No começo, ficávamos acanhados; depois, até a mistura era compartilhada nos almoços, quando não surrupiada no mesmo momento em que eram colocadas para aquecer. Não esqueço até hoje o aborrecimento de alguns: "Filhos da mãe! Roubaram o meu bife!”. Posso dizer que ter o bife roubado era melhor do que encontrar algo indesejado na hora de abrir a marmita. Uma vez encontrei um pedaço de tijolo. Um colega meu não teve a mesma sorte: encontrou uma barata; pelo menos essa estava morta. Se havia lugar para dar risadas, este lugar era o refeitório.
Na hora do intervalo, serviam uma espécie de "shake" oferecido pela escola. Tinha um sabor incrível, geralmente de banana, mas era tão bom que havia alunos que levavam recipientes exageradamente grandes para forrar a barriga, alguns até passavam mal de tanto tomarem o “shake”.
Às tardes, íamos para as oficinas. Lembro-me com detalhes dos primeiros contatos com um torno mecânico, do cheiro do líquido refrigerante ao encostar ao cavaco quase em brasa da peça recentemente torneada, das morsas nas bancadas, das limas que iam e vinham em busca da perfeição inalcançável.
Havia disputas entre as turmas de Mecânicos e de Eletrônica. Saía cada briga feia, pareciam verdadeiras gangues. Lembro que chegava meio arrebentado em casa, brigávamos por besteira, fazíamos elos fortes, primeiras amizades verdadeiras, aprendíamos a ter coragem, a se virar sem o irmão mais velha; claro que o principal era a escola quem nos dava: a profissão, o ensino sempre fora impecável.
Na hora de ir embora, sempre muita emoção: íamos em bando. Caso algum de nós fosse pego sozinho pelos eletrônicos ou vice e versa, já viu!
Pulávamos o muro da estação de trem, para economizar o passe de ônibus. Tinha um pessoal que ia no sentido Calmon Viana, eu ia com a galera que pegava a linha tronco, sentido Estudantes. Lembro-me da moça do alto falante dizer: "Composição estacionada na plataforma dois com destino à estação Estudanteees...". Era a maior correria, tinha de pular duas plataformas e às vezes me ralava todo, fazia isso só pra chegar a Artur Alvim e poder comprar uma batatinha chips com o passe economizado.
Certa vez, perdi um colega chamado Marcelo, que morava em São Miguel, que Deus o tenha. Ele era gordinho e na hora de pular uma das duas plataformas o trem o pegou... No enterro, todos diziam: "Malditas batatinhas!". Dei até um tempo nessa de pular o muro, ficava recordando a imagem dele, era horrível! Só não consegui dar um tempo nas batatinhas...
Mas de todo este tempo no SENAI lá do Braz, muita coisa aprendi, principalmente a de saber se virar um pouco sozinho nas andanças desta metrópole, de saber viver em grupo, respeitar os colegas e meus limites.
Lembro de nomes e fisionomias de praticamente todos os colegas e professores. Foi uma fase inesquecível que marcou o início de minha etapa adulta. Nunca mais os vi. Apesar de ter seguido outros caminhos e outra profissão, pois hoje sou Enfermeiro, guardo com muito carinho as primeiras andanças e encontros nesta fantástica cidade que é São Paulo.
As batatinhas chips, pelo menos aqui em Artur Alvim acabaram saindo de moda.
E-mail: rodrigo.enfo@gmail.com E-mail: rodrigo.enfo@gmail.com
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Impossível ler sua história e não se identificar... estudei nessa mesma época, em meados de 90, e a oratória seria praticamente a mesma, eu era do técnico, famoso HP, os "manos do quinto andar"... Realmente dá muitas saudades, também perdi um amigo nessa época. ele gostava de dar uma surfada no ônibus e um belo dia encontrou um fio de alta tensão a frente... As brigas no nosso caso eram com todo o CAI (curso de aprendizagem), por aí você pode imaginar, era briga todo dia... mas no final das contas era muito bom, tive verdadeiros irmãos nessa época, se eu soubesse que esse tempo faria tanta falta para mim, nunca teria desejado que acabasse rápido, francamente as lágrimas chegam perto de cair do rosto, braços amigo.
Enviado por Miguel Santos - msprimeiro@hotmail.comTambém jogava ping-pong e tudo mais, mas só pra quem tinha média nas matérias. Enviado por Natal Marengoni Júnior - natal.junior53@hotmail.com